Falar de comida e da Itália não é fácil. E principalmente, da Sicília. Seria injusto tentar resumir em uma viagem de quatro dias a riqueza de uma das regiões mais abençoadas em sabores da Europa. Então, me perdoem antes mesmo que eu comece.
Para início de conversa, a Sicília é uma ilha vulcânica. E tanto a separação do continente quanto a singularidade da paisagem local ou mesmo a proximidade da África, podem ser apontados como os responsáveis por uma atmosfera incomparável a qualquer outra região italiana. Fala-se italiano, mas é possível sentir claramente que a alma siciliana, e principalmente seu dialeto, é mais diversa, presente e intensa que a identidade unificadora da bandeira verde, branca e vermelha.
Em termos de gastronomia, as influências dos vários povos que passaram por ali ainda persistem, sendo as referências árabes na culinária local as mais marcantes. Foram eles que trouxeram as laranjas e limões, frutos icônicos sicilianos. Dizem também que foram os árabes que misturaram a neve do Etna com suco de frutas e cana de açúcar e criaram a granita e o sorvete bem ali. Aliás, a manipulação bem-sucedida do açúcar na Sicília criou a reputação indiscutível dos doces locais.
E claro, uma ilha é circundada de água do mar e por isso a gastronomia local é fortemente dependente da pesca. Mas, a terra ali também é rica e próspera, propicia o cultivo de muitas ervas aromáticas (orégano, rosmarinho, menta), cítricos, amêndoas, pistache e azeitonas. Graças à imigração hebraica e a influência do judaísmo, os sicilianos aprenderam a cozinhar “de maneira apropriada”, fritando o alho no azeite de oliva para dar mais gosto aos vegetais e aprendendo que do alimento nada se joga fora, nem mesmo a parte mais insignificante. Com a dominação normanda, a caça dos animais silvestres e técnicas culinárias se juntaram à tradição e os espanhóis inseriram as frituras. Dos exploradores da China e da Índia vieram as berinjelas, base de muitas preparações da região.
Tudo isso para dizer que com tanta riqueza gastronômica, a cozinha siciliana é o espelho da dieta mediterrânea tradicional, considerada como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, tombada pela Unesco em 2008. Nem falemos dos monumentos históricos e igrejas, porque senão esse texto não vai ter fim.
SE APAIXONAR POR PALERMO
Tive a oportunidade de passar quatro dias em Palermo. Pouquíssimo tempo para cobrir a beleza dos monumentos e a pluralidade das delícias. Palermo tem dessas coisas de cidade quente: vida notívaga e em defasagem com o resto do mundo. Por isso, tivemos que adaptar a nossa rotina para acordar mais tarde, saltando algumas visitas e começando o dia às onze e meia, sempre com um café lungo e bombas fritas roladas no açúcar e recheadas com creme. E obviamente, o suco de laranja sanguínea espremido na hora.
Não sei o que faz com que esse creme, localmente chamado de crema pasticcera, seja tão perfeito, mil vezes melhor que o recheio do nosso sonho de padaria. Acho que essa delícia concorre apenas com a ricota local, e apenas para ela, perde. A ricota siciliana é base para vários doces clássicos como a cassata ou o cannolo. Esse último me surpreendeu.
Explico: eu detesto doces em geral. Verdade. Não me ligo muito em açúcar ou em chocolate (EU SEI, sou estranha). Então, eu sempre via essas pessoas viajando para a Sicília e falando desse tal de cannolo com uma adoração digna das procissões católicas das igrejas italianas. Eu desdenhava, falava que não tinha como um doce ser isso tudo, porque era um doce apenas. Até tinha provado um ou outro em Paris e realmente, não tinha graça.
Tive que morder a língua. Lamber os beiços, quase chorar de alegria e me entupir dessa coisa divina que eu nunca vi igual em lugar nenhum. Qualquer coisa que você experimentar fora da Sicília com o mesmo nome não vale. Ali, e apenas ali, você está a dois passos do céu. Eu acho. E uma foto não consegue fazer jus à experiência gustativa.
Fotos: Edouard Ormancey
Canolissimo: Via Vittorio Emanuele, 407
(Continua.)