Ah… Panetone. Amo. Sempre amei. Esse produto, que em todo final de ano leva as pessoas a discussões acaloradas de preferências, tem quem goste e tem quem deteste. Com fruta cristalizada ou com gotas de chocolate? Com ou sem uva passa? Recheado? Esse texto pode ser meio polêmico… mas a questão é: você sabe como realmente deve ser um panetone?
De origem italiana no século XV, mais precisamente em Milão, o “Pan di Toni” é um símbolo para os italianos. Popularizado no final do século XIX, a tradição natalina se mantém forte até hoje, com competições e uma feira enorme que acontece todo ano em novembro, em Milão, onde os melhores chefs expõem e vendem os melhores panetones da Itália. O sucesso aqui é tanto que a moda mais recente é fazê-los “fora de estação”: no verão servido com gelato e frutas frescas e no outono com recheio de marrom-glacê, mel e especiarias. Mas é no Natal que ele reina, seja clássico com cobertura de amêndoas, recheado de gianduia ou de cremino de pistache ou diferentão com licor de café e limoncello. O impasto tem uma cor amarela bem característica, pela quantidade enorme de manteiga e gemas que a massa leva. Também é uma massa super “molenga” com alta hidratação. Os alvéolos são alongados e podem ser disformes, a graça é essa.
Tudo isso que estou falando diz respeito ao panetone clássico artesanal, o realizado sem corantes ou conservantes industriais, feito com fermentação 100% natural e muita, mas muita complexidade. Sim, o panetone tradicional é o produto mais complexo da panificação pois envolve muita técnica e tempo. São no total três dias de produção, entre fazer o primeiro impasto e estar pronto para ser degustado. São praticamente dois dias de fermentação em três etapas diferentes. Depende da temperatura, do manuseio, dos ingredientes, da farinha, da textura. Ou seja, é muito trabalhoso e merece ser respeitado. O meu antigo chef, onde eu trabalhava, ficou em 1º lugar em uma competição super importante este ano. Foi bem legal poder ter ajudado no processo de produção e eu passei a olhar de outra forma para o panetone, que eu passei a gostar muito mais aqui. Entendi que o que eu comia no Brasil não era Panetone, e eu vou te explicar porque.
As leis na Itália com relação a produtos tradicionais/locais são bem sérias (posso explicar em outro post sobre produtos DOP, IGP, TGP) e com o panetone não é diferente. Em 2003, foi criada uma lei que determina os ingredientes permitidos e como deve ser preparado. Se algo fugir dessa lista, então não é panetone, mas no máximo um pão doce. Significa que é ruim? Claro que não, mas não pode ser chamado de panetone.
Vamos lá: a denominação panetone é reservada ao produto da panificação/confeitaria obtido por fermentação ácida, de formato redondo, com crosta, cortado no topo em modo característico, de estrutura macia, com alvéolos prolongados e aroma típico de fermentação natural. São permitidos os seguintes ingredientes:
- farinha de trigo;
- açúcar e/ou mel
- água
- ovos frescos ou gemas pasteurizadas, mínimo 4%;
- manteiga de leite, mínimo 16%;
- manteiga de cacau
- frutas cristalizadas (principalmente laranja e mamão) uvas passas, casca/raspas de laranja/limão, quantidade mínima 20%.
- fermento 100% natural (lievito madre/levain/sourdough)
- baunilha;
- aromas naturais;
- sal.
Essa legislação não existe no Brasil, o que é estranho porque o Brasil é um dos países com maior produção e venda de panetone no mundo (até mais do que a Itália)! Mas infelizmente a maior parte dos panetones vendidos são feitos com misturas pré-prontas ou são industrializados cheios de corantes, aromas artificiais, gordura vegetal, emulsificante e conservantes. O panetone feito da forma tradicional não precisa disso. Na verdade, nada precisa disso né? O aroma vem das favas de baunilha misturadas com o cítrico da laranja e da própria acidez do levito madre. As frutas cristalizadas de qualidade dão a doçura e o sabor. A massa “desfia” quando é puxada (característica principal da massa do panetone feita com 100% de levito madre) e a textura é amanteigada, suave e muito úmida. A crosta feita com um mix de amêndoas doce e amarga, avelãs e açúcar.
Sei que parece chatice reclamar de algo assim, ser tão purista… Eu não sou contra inovar e criar novas combinações, inclusive acho que o papel do chef é de se reinventar sempre! Vale adaptar e rechear com brigadeiro, goiabada, doce de leite… (só não me venha com panetone “vulcão”). Imagina com lascas de coco queimado ou com praliné de castanha de caju? Mas precisamos diferenciar um produto de tradição e extremamente difícil de ser feito, com um meia boca ou charlatão. Passo muita raiva vendo gente vendendo (ou até ensinando a fazer) panetone que não passa de um pão doce fermentado. Temos que valorizar mais o trabalho artesanal do confeiteiro/padeiro e um dos primeiros passos é exigir mais qualidade naquilo que compramos e consumimos. Ah, isso não significa que precisa ser mais caro. E tá tudo bem se você gostar do panetone que sua tia fez em uma tarde, mas conhecer a origem daquilo que comemos, ainda mais sendo uma tradição tão forte de natal no nosso país, faz bem.
Fica aqui o meu manifesto pela produção artesanal! Feliz Natal e comam muito panetone!