Maio de 2018. Entrei no avião sem saber direito o que esperar. Afinal de contas, fiz a doideira de comprar uma passagem para o aeroporto internacional de Israel, Ben Gurion, entre Tel Aviv e Jerusalém. Li alguns guias, vi alguns filmes, falei com algumas pessoas que já tinham estado lá. Mas, nada poderia me preparar para uma viagem como essa. No meio dessa jornada, eu vivi um momento mágico. E quero falar disso aqui.
Sim, o mar (lago) da Galileia é de um azul tocante e eu nunca havia me sentido tão próxima de um amor infinito antes de ser abraçada pela brisa do alto do Monte das Beatitudes. Dizem que foi lá que Jesus recitou as palavras mais bonitas da sua breve existência terrena. Sim, consegui perceber que essa terra tão disputada é verdadeiramente o umbigo do mundo, uma única cama para dois sonhos, como diz um dos guias que eu li. Alguma coisa de sobrenatural aconteceu ali, certamente. Sim, eu senti todas essas intensidades, boas e ruins, de um lugar onde o amanhã é incerto e onde dizem que um dia vai rolar o tal do Juízo Final. Treta pesada.
Mas a experiência mais transcendental que eu tive não tem nada a ver com credo. Ela aconteceu graças a um senhor de mais de 70 anos, chamado Uri Jeremias, a 90 km ao norte de Tel-Aviv, em uma cidade portuária, carregada de história. Acre, ou Akko para os locais, era o ponto de chegada dos barcos europeus que vinham em peregrinação na época das Cruzadas. Algumas ruinas daquele tempo foram transformados num museu medieval que vale muito a pena visitar.
Mas voltemos ao personagem: Uri parece ser um cara de outro planeta. Digo “parece” porque não tive a honra de conhecê-lo. Conheço a sua história: menino hiperativo, vivia pescando, caiu cedo no mundo e depois de muitas idas e vindas decidiu dirigir uma van da Alemanha até a Índia, onde ficou durante um ano numa vida nômade e onde se apaixonou pela cozinha, até terminar a viagem no Nepal. De volta numa segunda-feira à sua cidade, foi numa festa na sexta, conheceu sua vizinha, prometeu amor eterno e 48 anos depois ainda estão casados. Uri Jeremias é dessas pessoas intensas, vividas e decididas. Em 1988, graças ao conselho de um amigo, abriu um restaurante especializado em peixes e frutos do mar: o Uri Buri.
O Uri Buri é uma combinação de tudo o que eu senti nessa viagem. Uma experiência forte, tipo um tapa na cara merecido e a sensação de ter crescido um pouco mais saindo de lá. O local é simples, sem músicas ou decorações. Foco na comida, foco no que importa. Toalhas brancas, pratos também. Reserva obrigatória, o restaurante fica sempre cheio. O garçom chegou com os cardápios, mas já falando ansiosamente sobre um menu degustação. Opa. Grande hesitação: eu tinha lido em vários sites sobre como a comida era boa, mas não que eu não teria opções. Vi dois pratos principais vegetarianos e pensei: bom, vai ser um deles. Edouard? Tranquilo, come de tudo, pelo menos ele vai aproveitar.
Agora, sobre o meu problema: eu não suporto peixe. Até o dia em que eu pisei no Uri Buri. Depois de muita hesitação, pedimos duas entradas tímidas acompanhadas de vinho branco. Alias, parênteses: o vinho local é EXCELENTE. Pode ir sem medo. Nosso sashimi de salmão no shoyo com sorvete de wasabi e ceviche de dourado me deram um baque. Peraí, pensei, eu estou num restaurante muuuuito bom. E de repente veio essa sensação de descontrole e improviso, deliciosa, que a gente experimenta apenas viajando.
O garçom voltou, dessa vez acompanhado de uma garçonete mais experiente, um tanto quanto autoritária, que roubou a cena. Já havíamos escolhido os nossos pratos, mas ela não quis saber. Depois de ouvir que gostamos das entradas, ela cancelou tudo e me disse que eu ia comer um peixe-lobo grelhado com purê e que Edouard ia provar uma espécie de moqueca branca de robalo com arroz e leite de coco. E que depois enviaria as vieiras salteadas com creme de algas marinhas à mesa. Sem pedir licença, mas dizendo que caso a gente não estivesse satisfeito a comida voltaria para a cozinha sem nenhuma cobrança. Entrei no jogo. Olhei no olho dela, bem lá no fundão mesmo e falei no mesmo tom desafiador: Quer saber? Está bem. Tomara que seja bom mesmo, porque eu decidi confiar em você. Colhões, minha gente, tive que ter. E que decisão acertada. Meu milagre aconteceu bem ali, naquela mesa. Fui nesse restaurante por causa de um homem, mas conheci a razão de sua grandeza graças a uma mulher. O Uri Buri é uma lenda viva. Pessoas (e chefs) do mundo todo passam por ali para experimentar a comida, numa espécie de peregrinação gastronômica.
E que assim seja, amém.
Fotos: Edouard Ormancey
Uri Buri: Ha-Hagana Street, Acre, 24315, Israel. Tel: +972 4-955-2212